domingo, 17 de outubro de 2010

Não há bolinhos de arroz

Não há bolinhos de arroz aqui no Valhala, diz Odin, de cima de seu cavalo de oito patas, ao bravo guerreiro que vai entrando. Uma surpresa terrível. Não é correto simplesmente empurrar hidromel pela garganta de um homem que lutou por toda a sua vida esperando pelo dia em que seria recompensado com bolinhos de arroz na eternidade. Não é compreensível que alguém realmente pense que orgias sejam capazes de substituir o prazer que é provar da maciez de um bom bolinho de arroz.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Cuidados

Só não me obriguem mais a conviver com essa gente sem cuidados, com essa gente dura e fria que acorda todos os dias às sete e toma seu café da manhã na Lancheria Pão Feliz, com essa gente que se aproxima do caixa com a indiferença de quem irá tirar da carteira uma nota de vinte e dará as costas mal o troco lhes toque a mão direita.

Uma senhorinha bem-vestida entra em um bazar e pede um carretel de linha azul sem se importar com as infinitas variações que essa palavra ‘azul’ comporta: turquesa, celeste, cobalto, marinho, caribe ou inverno. Mediante os olhares aturdidos das pobres vendedoras, a senhorinha não apresenta nenhum embaraço em lhes explicar o que o tom do azul tanto faz, contanto que o azul seja azul de fato. Mete um carretel qualquer na bolsa, deixa uma moeda sobre o balcão e desaparece, por entre bonecas e jogos de pratos, pela mesma portinha estreita que lhe deu as boas-vindas minutos atrás.

Dois homens de chapéu conversam em uma esquina qualquer quando passa por eles um bolso furado e perde uma bola de gude. “Como vai a esposa?”, “Encomendei um novo paletó: coisa fina”, “E aquele jantar? Precisamos nos ver mais vezes!”. Não observam a bola de gude que rola alegre pela Rua Presidente Vargas, é chutada por um terceiro homem de chapéu (serão quantos nessa cidade?), mergulha em uma boca-de-lobo, flutua por nefastas tubulações, causa admiração em um ratinho, dá um drible na estação de tratamento e percorre três mil e quatrocentos quilômetros para finalmente abraçar o Oceano Atlântico. Essa gente eu não quero mais.

domingo, 4 de julho de 2010

Animal: anta

A anta é o maior mamífero da América do Sul. Animal de modos solitários, é membro da ordem dos perissodactyla, vivendo em ambientes úmidos como florestas e margens de rios. Sua dieta é constituída à base de vegetais: comilona, a anta chega a ingerir até mesmo quarenta quilogramas de frutas e folhas por dia.

Embora geralmente pacatas, as antas possuem a força necessária para se defender quando preciso. Sua força: um diamante bruto. Orgulho sulamericano, algumas antas tornaram-se célebres em todo o mundo por sua participação no famoso filme de ficção científica '2001: Uma Odisséia no Espaço', dirigido por Stanley Kubrick. Licença poética, tão somente. Jamais poderiam ter existido em cenário árido como o retratado no filme.

Que animal magnífico! Contemplem suas formas concisas e herméticas:












O que poucos sabem, no entanto, é que além das quatro espécies de anta cientificamente catalogadas (Tapirus: terrestris, bairdii, pinchaque e indicus), existe uma quinta sobre a qual raramente se faz qualquer menção. Seu nome é maldito e provoca pavor entre os estudiosos. Teme-se que talvez nem mesmo possa ser escrito com as letras previstas pelo homem, conquanto não haja até hoje quem tenha tentado. Uma de suas características é particularmente assombrosa: tais antas medem o tamanho de um polegar.

Essas pequenas antas preferem o meio urbano ao selvático. Em caso de urbano-decadente, tão melhor. Quartos de jovens estudantes solitários e longos corredores sem portas parecem ser exatamente propícios para o desenvolvimento desses fantásticos animais (especula-se que não possam suportar a existência em local onde exista o mínimo de amor). Seus hábitos alimentares merecem atenção especial: excluem o vegetarianismo e concentram-se em plástico e restos de unhas. Dado curioso é que não toleram ser vistas por seres humanos: ao menor sinal da presença de qualquer indivíduo correm rapidamente para debaixo de algum móvel, onde se desmaterializam de maneira ainda incompreensível.

Curiosas são as teoriais que buscam explicar suas origens. Uma delas, de cunho teleológico, propõe que sejam esses animais os guardiões de certo segredo para se alcançar a consciência plena. Outra, de aspecto religioso, sugere que sejam provenientes das lágrimas que os anjos choraram quando da crucificação de Cristo. Uma terceira, bastante prática, afirma serem simples produto da imaginação.

Em negação a esta última teoria, Natália jura ter visto uma dessas antas enquanto limpava a gaveta que usa improvisada como criado-mudo. Gilberto vai além: conta ter enxergado três delas fugindo para debaixo de sua cama quando se levantava às três da madrugada do dia seis de novembro para ir ao banheiro.